sexta-feira, outubro 21

Receitas literárias - Prato de peixe

VATAPÁ DE PEIXE
Vamos ao fogão: prato de capricho e esmero é o vatapá de peixe (ou de galinha), o mais famoso de toda a culinária da Bahia. Não me digam que sou jovem, sou viúva: morta estou para essas coisas. Vatapá para servir a dez pessoas (e para sobrar como é devido).
Tragam duas cabeças de garoupa fresca - pode ser de outro peixe, mas não é tão bom. Tomem do sal, do coentro, do alho e da cebola, alguns tomates e o suco de um limão.
Quatro colheres das de sopa, cheias com o melhor azeite doce, tanto serve português como espanhol; ouvi dizer que o grego ainda é melhor, não sei. Jamais usei por não encontrá-lo à venda.
Se encontrar um noivo que farei? Alguém que retome meu desejo morto, enterrado no carrego do defunto? Que sabem vocês, meninas, da intimidade das viúvas? Desejo de viúva é desejo de deboche e de pecado, viúva séria não fala nessas coisas, não pensa nessas coisas, não conversa sobre isso. Me deixem em paz, no meu fogão.
Refoguem o peixe nesses temperos todos e o ponham a cozinhar num bocadinho d'água, um bocadinho só, um quase nada. Depois é só coar o molho, deixá-lo à parte, e vamos adiante.
Se o meu leito é triste cama de dormir, apenas, sem outra serventia, que importa? Tudo no mundo tem compensações. Nada melhor do que viver tranquila, sem sonhos, sem desejos, sem se consumir em labaredas com o ventre aceso em fogo. Vida melhor não pode haver que a da viúva séria e recatada, vida pacata, liberta de ambição e do desejo. Mas, e se não for meu leito cama de dormir e, sim, deserto a atravessar, escaldante areia do desejo sem porta de saída? Que sabem vocês da intimidade das viúvas, de seu leito solitário, de seu carrego de defunto? Aqui vieram para aprender a cozinhar e não para saber o preço da renúncia, o preço que se paga em ânsia e solidão para ser viúva honesta e recatada. Continuem a lição.
Tomem do ralo e de dois cocos escolhidos - e ralem. Ralem com vontade, vamos, ralem: nunca fez mal a ninguém um pouco de exercício (dizem que o exercício evita os pensamentos maus: não creio). Juntem a branca massa bem ralada e a aqueçam antes de espremê-la: assim sairá mais fácil o leite grosso, o puro leite de coco sem mistura. A parte o deixem.
Tirando esse primeiro leite, o grosso, não joguem a massa fora, não sejam esperdiçadas, que os tempos não estão de desperdício. Peguem a mesma massa e a escaldem na fervura de um litro de água. Depois a espremam para obter o leite ralo. O que sobrar da massa joguem fora, pois agora é só bagaço. [...]
Descasquem o pão dormido e descascado o ponham nesse leite ralo para amolecer. Na máquina de moer carne (bem lavada) moam o pão assim amolecido em coco, e moam amendoins, camarões secos, castanhas de caju, gengibre, sem esquecer a pimenta-malagueta ao gosto do freguês (uns gostam de vatapá ardendo na pimenta, outros querem uma pitada apenas, uma sombra de picante).
Moídos e misturados, esses temperos juntem ao apurado molho da garoupa, somando tempero com tempero, o gengibre com o coco, o sal com a pimenta, o alho com a castanha, e levem tudo ao fogo só para engrossar o caldo.
Se o vatapá, forte de gengibre, pimenta, amendoim, não age sobre a gente dando calor aos sonhos, devassos condimentos? Que sei eu de tais necessidades? Jamais necessitei de gengibre e amendoim; eram a mão, a língua, a palavra, o lábio, seu perfil, sua graça, era ele quem me despia do lençol e do pudor para a louca astronomia de seu beijo, para me acender em estrelas, em seu mel nocturno. [...] Sou uma viúva, nem falar de tais coisas fica bem ao meu estado. Viúva no fogão a cozinhar o vatapá, pesando o gengibre, o amendoim, a malagueta, e tão-somente.
A seguir agreguem leite de coco, o grosso e puro, e finalmente o azeite-de-dendê, duas xícaras bem medidas: flor de dendê, da cor de ouro velho, a cor do vatapá. Deixem cozinhar por longo tempo em fogo baixo; com a colher de pau não parem de mexer, sempre para o mesmo lado: não parem de mexer senão embola o vatapá. Mexam, remexam, vamos, sem parar; até chegar ao ponto justo e exactamente.
Em fogo lento meus sonhos me consomem, não me cabe culpa, sou apenas uma viúva dividida ao meio, de um lado viúva honesta e recatada, de outro viúva debochada, quase histérica, desfeita em chilique e calundu. Esse manto de recato me asfixia, de noite corro as ruas em busca de marido. De marido a quem servir o vatapá doirado e meu cobreado corpo de gengibre e mel.
Chegou o vatapá ao ponto, vejam que beleza! Para servi-lo falta apenas derramar um pouco de azeite-de-dendê por cima, azeite cru. Acompanhado de acaçá o sirvam, e noivos e maridos lamberão os beiços.

Jorge Amado*, Dona Flor e Seus Dois Maridos

INGREDIENTES [10 pessoas]
1kg de pão da véspera
1/2kg de cebolas
300g de camarão
250g de amendoim
250g de castanha de caju
1 copo de leite de coco grosso
2 copos de leite de coco fino
50g de gengibre
2 chávenas de azeite de dendê
Sal q.b.

CALDO
2 cabeças de peixe
1 molho de coentros
3 dentes de alho
2 tomates grandes
2 cebolas grandes
1 limão
Pimenta-malagueta q.b.
Sal q.b.

*AMADO, Jorge [1912-2001]
Romancista brasileiro, Jorge Amado possui uma vasta obra que reflecte o sofrimento do povo da Baía, sua fonte de inspiração primordial.
Bibliografia
País do Carnaval (1931); Capitães da Areia (1937); Gabriela, Cravo e Canela (1958); Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966); Tenda dos Milagres (1969); Tereza Batista, Cansada de Guerra (1972); Tieta do Agreste (1977), entre outros.

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