sexta-feira, agosto 12

Uma história de Verão


[via Blogue do PNL]

12 de agosto

Miguel Torga faria 104 anos

Adolfo Correia Rocha, que viria a ser conhecido nacional e internacionalmente pelo pseudónimo de Miguel Torga, nasceu em 12 de Agosto de 1907 em São Martinho de Anta, do concelho de Sabrosa. Foram seus pais Francisco Correia Rocha e Maria da Conceição de Barros, camponeses de poucas posses, que tiveram ainda mais dois filhos, José e Maria.
Concluído em 1917 o ensino primário em São Martinho de Anta, e após uma breve passagem pelo Porto, como serventuário de uma família burguesa, entrou em 1918 para o Seminário de Lamego, que frequentou apenas durante um ano e abandonou, contra a vontade do pai, por falta de vocação. Foi então enviado para o Brasil, em 1920, ao cuidado de um tio abastado, proprietário duma fazenda em Minas Gerais. Aí se ocupou das tarefas mais diversas relacionadas com a vida da fazenda, incluindo a contabilidade, ao mesmo tempo que terá começado a escrever os primeiros versos.
Em 1925 regressa a Portugal. Com a ajuda monetária do tio, conclui o Curso dos Liceus em Coimbra e ingressa em 1928 na Faculdade de Medicina da mesma cidade, vindo a formar-se em 1933. Em 1938 obteve a especialização em otorrinolaringologia. Enquanto estudante de Medicina, residiu na República Estrela do Norte, onde residiam igualmente outros estudantes trasmontanos.
Após a formatura, exerce fugazmente clínica em São Martinho de Anta, de onde passa a Vila Nova (Miranda do Corvo) e depois, em Junho de 1939, a Leiria.
Em 1940 casa com a cidadã de nacionalidade belga Andrée Crabbé, então professora assistente na Faculdade de Letras de Lisboa. No ano seguinte fixa-se em Coimbra, onde abre consultório, e é nessa cidade que vive o resto dos seus dias, com frequentes viagens em Portugal (com destaque para São Martinho de Anta, onde radica a sua matriz anímica e que sente necessidade de visitar regularmente) e no estrangeiro. Do casamento nasceu uma única filha, Clara, hoje professora da Universidade Nova de Lisboa. Miguel Torga faleceu em Coimbra, em 17 de Janeiro de 1995, sendo sepultado no dia seguinte em São Martinho de Anta. À cabeceira da campa rasa foi plantada uma torga.
Miguel Torga é um dos maiores vultos da literatura portuguesa de todos os tempos, aliás internacionalmente reconhecido e premiado. Publicado o primeiro livro (Ansiedade) em 1928, ligou-se no ano imediato ao grupo modernista da Presença, chefiado por José Régio e João Gaspar Simões, em cuja revista colaborou. Esta ligação contribui em muito para a sua consciencialização estético-literária. Mas em 1930 afasta-se do movimento, acompanhado nesta cisão por Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. Com este funda a revista Sinal, que se salda por um rotundo fracasso, saindo apenas um número. Em 1936 participa ainda na equipa que lançou a revista Manifesto, de que saíram 5 números. Nesta é já bem perceptível o afastamento em relação à Presença e a posição socialmente interventiva do poeta.
A partir daí, Miguel Torga desliga-se de grupos literários e segue um caminho próprio – a única via que convinha a um espírito visceralmente rebelde como era o seu. De facto, como escreve David Mourão-Ferreira, «a sua posição, nas nossas letras, continua a ser a de um grande isolado – que, no entanto (ou por isso mesmo) consubstancia e representa, ora de forma mais directa ora através de inevitáveis símbolos, quanto existe de viril, de vertical, de insubornável, no homem português contemporâneo.» O próprio poeta assume que lhe calhou em sorte «ser o mau da peça, o inconformado, o frontal, o desmancha-prazeres» (Diário XIV).
Miguel Torga deixou uma obra muito diversificada: poesia, conto, novela, romance, diário, teatro, ensaio. Mas, no âmbito deste Ciclo "Poesia Trasmontana e Alto-Duriense", interessa-nos apenas a sua faceta de poeta. Deixou-nos 15 títulos de poesia, além de duas colectâneas (Antologia poética, seleccionada pelo próprio, de 1981, e Poesia completa, de 2000) e sobretudo inúmeros poemas inseridos nos dezasseis volumes do seu Diário e reeditados nas citadas antologias. Os primeiros quatro livros são ainda assinados com o nome de Adolfo Rocha: Ansiedade, de 1928, Rampa, de 1930, Tributo, de 1931, e Abismo, de 1932. O pseudónimo Miguel Torga foi usado pela primeira vez na novela A terceira voz, de 1934, e é com ele que firma todas as obras seguintes, entre as quais os livros de poemas O outro livro de Job, de 1936, Lamentação, de 1943, Libertação, de 1944, Odes, de 1946, Nihil sibi, de 1948, Cântico do homem, de 1950, Alguns poemas ibéricos, de 1952, Penas do purgatório, de 1954, Orfeu rebelde, de 1958, Câmara ardente, de 1962, e Poemas ibéricos, de 1965. Segundo Eduardo Lourenço, o pseudónimo escolhido é «na sua origem e na sua intenção um baptismo à maneira bíblica onde se inscreve de antemão um destino a cumprir». Na verdade, o substantivo comum ‘torga’ (variedade de urze de floração branca) remete para uma rusticidade e um apego à terra que quadram harmoniosamente com o espírito da máxima parte da obra do escritor, tanto na poesia como nos outros géneros que cultivou.
O seu comprometimento com o destino do homem, decorrente de um «humanismo essencial e consequente» (ainda nas palavras de David Mourão-Ferreira), valeu-lhe dissabores vários, como a censura e a apreensão de obras suas pela PIDE. E também a prisão, como aconteceu em finais de 1939, a pretexto do quarto volume da Criação do mundo. Mas, mesmo na hora da libertação do país, em 25 de Abril de 1974, Torga, desconfiado dos militares, manteve-se íntegro (inteiro, como ele gostava de dizer) e afastado da política partidária, em que não se revia, recusando totalitarismos e demagogias e proclamando sempre os valores da liberdade e da solidariedade. Em 1973 tinha escrito: «É escusado. Não posso ter outro partido senão o da liberdade.»
A poesia de Miguel Torga desenvolve-se ao longo de algumas linhas de força, que por vezes se interpenetram. As mais importantes serão uma certa religiosidade agnóstica de que decorre a afirmação de individualidade rebelde e desafiadora da criatura ante o criador; a manifestação de uma solidariedade inquebrantável com os homens; e a exaltação da liberdade e consequente execração da tirania.
Miguel Torga foi distinguido com diversos prémios de grande relevância, de que destacamos o Prémio Internacional da XII Bienal de Poesia de Knokke-Heist (Bélgica, 1976), o Prémio Morgado de Mateus (1980), o Prémio Montaigne (1981), o Prémio Camões, o mais importante do mundo da lusofonia (1989), o Prémio Vida Literária da APE (1992), o Prémio Écureuil de Literatura Estrangeira do Salão do Livro de Bordéus (1992). Em 1960 chegou a ser equacionada a sua candidatura ao Prémio Nobel, o mesmo tendo acontecido em 1978.